Era uma daquelas noites bem geladas de Dezembro no boêmio bairro de Montmartre. Eu me lembro que vendemos pouquíssimos cafés nesta véspera de Natal (quem vai em cafeteria uma noite dessas?). O Pierre me liberou mais cedo para que eu pudesse preparar a ceia de amanhã, mas ele mal sabia que provavelmente eu esquentaria o croissant que sobrou na vitrine.
A Marie me convidou para ir até a casa dela, seus pais estariam em Londres e a ideia era uma véspera fora do comum, regada de muito vinho e músicas nada natalinas. “Todo mundo vai, vamos trocar presentes, não aceito desculpas se não for”. Pensei comigo que já gastei todo o meu repertório nos últimos meses. Até arrumei um gato de mentira e ele morreu em menos de dois dias. Todo mundo vai. Todo mundo. Todo. Jacques. Ele vai estar lá. Ela vai estar lá.
Eu vou dizer que mamãe saiu do hospital inesperadamente e preparamos uma ceia para nós duas. Ela vai acreditar. Ele não.
Não sei explicar quando nos apaixonamos. Nós sempre fomos amigos e amigos dos nossos amigos. Nos víamos quase todos os dias. A banda em que ele toca guitarra ensaia umas duas vezes por dia no bar da esquina e a gente se encontrava quando eu saía do café. Ele sempre tinha um chocolate no bolso da jaqueta marrom pra me dar e me desejar boa noite. Os olhares que nós trocávamos eram inevitáveis. O cheiro dele sempre ficava no meu corpo com seu jeito forte de me abraçar e ainda encostava a barba no meu rosto só pra me fazer cócegas. Nunca nos beijamos. O sorriso dele pra mim era indescritível. Ele só sorria assim pra mim.
A cada mês ele me dava um livro pra ler com uma dedicatória intrigante. A força que há em nós da Dawn Watson foi o primeiro livro em português que me deu. E também o último. “Espero que você me entenda”, escreveu na capa. No mesmo dia os vi juntos pela primeira vez. Nunca abri o livro. No dia seguinte ela me ligou e me contou tudo. Os detalhes, o sabor do beijo e do chocolate que antes era pra mim.
E desde então estou buscando novas desculpas. Saí do café e prometi ao Pierre que não ficaria sozinha. Assim como já prometi diversas vezes que experimentaria canela no cappuccino e nunca tive coragem. Detesto canela.
Cheguei em casa por volta das 22h. Enchi a banheira de água fervendo com sais de rosa branca e me enfiei nela por horas. Comi meu croissant ali mesmo e tomei uma taça de um rose velho que estava na geladeira. Meu celular tocou umas cinco vezes atrapalhando minha sofrida playlist da Carla Bruni. Na sexta vez, eu atendi e Marie estava nitidamente alegre: “Você é a pior melhor amiga do mundo”.
Dessa vez inventei que estava com o americano que parou no café mais cedo (realmente conheci um americano que inclusive pediu meu telefone mas é claro que passei o número errado). Ouvi ela gritar pra todo mundo a minha desculpa da noite misturada com música latina, algumas vozes me desejando feliz natal e outras me convidando para algum brunch que não entendi. Desliguei me obrigando a sair da banheira e me enfiar no sofá. Coloquei um pijama daqueles bem velhos mas bem quentes que a gente ama, amarelo e todo de veludo. Ele disse uma vez que provavelmente o pijama era da minha avó mas não existem dessas coisas no Brasil. O controle passou por uns quinze canais até parar em um episódio repetido da quarta temporada de Skam France. Um pouco de drama adolescente como sonífero.
Às 02 da manhã a campainha tocou. Eu estava cochilando no sofá e pensei que provavelmente fosse algum bêbado perdido no apartamento errado. Minha cabeça doía um pouco, acho que vinho velho faz mal. A campainha tocou pela segunda vez.
“Eu sei que você está aí, que está sozinha e com seu pijama de veludo. Não vou embora enquanto não aceitar meu presente”.
Pensei em pular da janela mas nunca quis morrer com meu pijama. Só ele sabia.
Esperei mais um pouco e a campainha insistiu por dez incansáveis segundos. Abri. A pessoa que nunca imaginei estar na minha porta naquele momento estava com uma garrafa de vinho na mão, uma baguete de três queijos e com cachecóis de tricô enrolados do pescoço até o nariz.
Eu não deveria ter aberto a porta. Eu não deveria ter dado um sorriso quando ele chegou. Eu sabia que tinha um motivo para ele estar ali. Acho que fiquei calada por um bom tempo como uma estátua quando lembrei do meu passado e de como fui trocada diversas vezes no meu antigo relacionamento. Eu soube de tudo apenas uns anos depois. Não foi justo comigo. Isso não era justo com a Marie.
Ele entrou desenrolando o cachecol do pescoço e amontoou as coisas em cima da mesa. Começou a falar das mil coisas que eu havia perdido na festa, de como foi um porre não beber para cuidar da Marie (enquanto isso ele abria desesperadamente a garrafa de vinho) e que amanhã iríamos ao brunch da Eloise. Eu estava paralisada ainda na porta. Não entendi o que aquela criatura maravilhosa estava fazendo no meu apartamento.
- Por que você está aqui? - saiu de mim uma voz embargada de sono.
Com duas taças na mão ele caminhou até mim e me propôs um brinde.
- A nós?
Eu hesitei. Ele olhou para mim com um olhar doce e colocou seu polegar no meu queixo. De pressa peguei a taça que me oferecera, fechei os olhos e bebi tudo sem respirar. Foi quando ele encostou sua barba no meu rosto para me arrancar uma risada. Eu não consegui rir. Senti o polegar direito dele deslizando nos meus lábios. Quando abri os olhos, ele me beijou.
Às 06 da manhã eu acordei. Ouvi um barulho de alguém batendo a porta da sala com muita pressa. Minha cabeça não parava de rodar e notei as garrafas de vinho no chão. Jacques saiu tão rápido que esqueceu seus cachecóis amarrados na cama. Fiquei deitada por um tempo até conseguir levantar. Comecei a lembrar de alguns momentos daquela noite e corri para o banheiro onde despejei um vômito escuro no vaso. Eu nunca fui uma garota politicamente correta e não tenho um relacionamento sério. Eu merecia aquela noite mas, eu não conseguia aceitar que havia passado a noite com o cara que eu sou completamente apaixonada. Eu nunca me apaixonei antes disso, sempre depois (até porque a química do corpo deve acontecer). O problema é que eu me apaixonei mais ainda. Ele é incrivelmente perfeito. O cheiro, o gosto, o toque. Vomitei mais um pouco e consegui forças para levantar e tomar banho. Apesar da ressaca de vinho ser horrível eu me sentia ótima e decidi que iria ao brunch. Eloisa era uma boa amiga e seu marido uma comédia ambulante. Seria bom dar umas boas risadas e estar com os meus amigos. Não me lembrei que os dois poderiam estar juntos mesmo após isso.
Saí do banho, prepararei um omelete e um café forte para melhorar. Entrei no quarto e me arrepiei ao sentir o cheiro dele. Parece que a madrugada durou uma eternidade. Chutei uma garrafa no chão e ri sozinha ao lembrar das brincadeiras que fizemos, das palhaçadas dele pra me conquistar, do meu jeito péssimo de ser séria e do quanto tivemos que beber depois que o aquecedor parou de esquentar o quarto. Foi aí que as coisas começaram a ficar mais fortes. Confesso que parecíamos amigos amantes com tantas risadas durante os beijos e carícias. Ainda não acredito que vivi isso.
Coloquei meu vestido preto de manga longa, uma meia grossa, botas marrons e um casaco gigante de cor indefinida. Desde que eu mudei de país não vestia algo justo e sei que fico perfeitamente linda. Como era um brunch passei apenas meu gloss preferido e um pouco de pó para cobrir as olheiras da noite mal dormida. Enrolei os cachecóis do Jacques no meu pescoço mas só percebi o cheiro do perfume quando já estava no metrô, afinal, caía uma chuva bem fina e o tempo frio parecia piorar, só consegui correr para encontrar um lugar quente. Eu ficaria a manhã inteira com o cheiro dele no meu pescoço.